O trabalho de análise se constitui na direção de uma separação. Separar-se do Outro pode significar separar-se da crença de que exista um Outro que sabe — um Outro todo, completo, que sabe o que faz. Essa separação é interna e subjetiva: simbolicamente, trata-se de se desprender da idealização imaginária da existência de alguém que detenha o saber, que possua aquilo que nos falta para sermos completos e, assim, plenamente amados e amáveis.
É aí que opera a transferência: o analista se utiliza desse engodo para, amorosamente, ir descompletando — fazendo vacilar os sentidos e significações, e retornando ao sujeito seus ditos a partir de outro lugar, o lugar da ambiguidade dos significantes. Uma frase dita pelo Outro pode ser interpretada de maneiras distintas daquela assumida pelo sujeito — o que aponta para a confusão inerente às relações.
O trabalho de análise desconfunde — no sentido de incidir sobre a com-fusão que o sujeito estabelece quando opera na lógica da fusão, da completude. Se uma frase pode ter vários sentidos, evidencia-se que o sentido atribuído pelo sujeito às palavras ouvidas fala também sobre ele, sobre sua lógica, sobre sua posição frente ao Outro.
Separar-se do Outro é internalizar que também falta algo no Outro. Falta em mim, falta em você. Separar-se é abandonar a ideia de que o Outro não tem falta. Separar-se é sair da solidão e entrar na solitude:
É como se eu e o outro fôssemos uma coisa só.
Quanto mais se faz um com o outro, mais só se fica.
Sobre a função da falta como constitutiva do amor:
Se algo nos falta, nos pomos a desejar aquilo que nos falta e que supomos que o outro tem. Mas… o outro não tem. É aí que emerge a função constitutiva do amor.
Em seu livro Eros: o Doce Amargo (2003), Anne Carson fala sobre o dilema de Eros implicar a falta. Como expressa Diotima, no Banquete de Platão, Eros é um bastardo capturado pela Riqueza na Pobreza, e seu lar é uma vida de carência. A fome é a analogia escolhida por Simone Weil para esse impasse:
“Todos os nossos desejos são contraditórios, como o desejo por comida. Eu quero que a pessoa que eu amo me ame. No entanto, se ele é totalmente devotado a mim, ele para de existir e eu deixo de amá-lo. E enquanto ele não for totalmente devotado a mim, ele não me ama o suficiente.”
Fome e saciedade.
Muitas são as pessoas que amam comer. E não há uma só comida que mate nossa fome por completo, para sempre — assim como não há uma só comida que contenha tudo em si. Ao arroz falta o feijão; ao feijão, falta a couve. É de falta em falta que se constitui uma refeição.
Que seja eterno enquanto dure: que sejam eternos os momentos em que é possível se iludir de que se está completo, cheio, satisfeito, sem falta — porque, logo depois, a fome retorna para nos lembrar de que desejaremos de novo, e de novo, e de novo.
Assim, de forma simples, um caminho possível seria fazer as pazes com a falta, com a fome e com o fato de que, a cada chegada dela, somos convidados a escolher — a partir do nosso gosto e possibilidades — o que vamos comer.
Eros é movimento. É o que aparece no entre — entre a fome e a saciedade, entre a presença e a ausência, entre a vida e a morte. Matar a fome e senti-la ressurgir. A fome que se mata é simbólica, pois aquilo que nos falta nunca realmente existiu. Mata-se a fome — e, ainda assim, ela retorna.
Uma criança, após sua sessão brincante, corre para a mãe na sala de espera e diz: “Mamãe, eu te matei!” E, ainda assim, sua mãe estava lá, à sua espera.
“Quem deseja o que não foi embora? Ninguém.
Os gregos deixaram isso bem claro.
Inventaram Eros para expressar isso”.
Texto encorajado por Márcia Infante, supervisora e professora do Grupo de Estudos: A Transferência: de Freud a Lacan, ocorrido ao longo de 2024.
Referências bibliográficas:
Lacan, J. (1992). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Seminário original de 1960-1961)
CARSON, Anne. O doce amargo. Tradução de Maria Clara de Moraes Rego. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Autora: Juliana Valadares
Aluna/Comissão da Revista Gradiva.