(Entre)vista Preliminar: Angélica Tironi

29/06/2025

A primeira convidada da nossa ENTREVISTA PRELIMINAR é a criadora e Diretora do Instituto Gradiva, Angélica Tironi.

Nascida em Vitória – ES, se mudou para o Rio de Janeiro em 1995. Desde então, vem construindo com coragem e ousadia sua trajetória na psicanálise. A partir de muito estudo e de uma escuta afiada, vem transitando entre a clínica, pesquisa e transmissão. Tal percurso desembocou, em 2022, na criação de Gradiva e na formação de novos psicanalistas, impactando no cenário atual da psicanálise do Brasil.

A partir de um bom encontro, tivemos o privilégio de escutar Angélica Tironi. 

Revista: Como você se apresenta?

(Suspiro) Me chamo Angélica Cantarella Tironi, sou psicanalista, Diretora de Gradiva; estas são as credenciais, né? (Risos)… mas me apresento de muitas outras formas, que venho descobrindo recentemente. A natação é algo encantador na minha vida. Meu encontro com o mar é um encontro de infância que o Rio tem me permitido resgatar: nadar em Copacabana e Ipanema é uma experiência sem tamanho. Eu também sou uma estudiosa. Recentemente estou em obra no consultório e nesse encaixotamento dos livros vejo o quanto eles me fazem falta. Estou fazendo uma oficina literária que tem me feito entender que eu também sou uma escritora. Fiz mestrado, doutorado, pós-doc, mas nunca me entendi escritora nesse percurso. Isso tem sido muito interessante. E agora, com o desaparecimento momentâneo da minha biblioteca, tenho produzido uma escrita muito diferente. Então, além das credenciais oficiais, sou uma nadadora e escritora oficiosas.

Revista: Como você apresenta o Instituto Gradiva?

Gradiva vem de um sonho de faculdade. Quando estava fazendo o SPA (Serviço de Psicologia Aplicada) na PUC, conversava sobre abrir um espaço de atendimento social. Quando falava sobre esse espaço, pensava em uma casa com diversos profissionais da área da saúde. Esse projeto nunca foi para a frente. Ele ficou latente até a chegada da pandemia, que trouxe mudanças importantes no que atualmente consideramos espaço de atendimento.

Eu vim amadurecendo esse sonho a partir da relação com meu pai. Tive um pai humanista, médico oftalmologista que fez inúmeros mutirões para consultar e distribuir óculos a quem precisava. Ele mobilizava patrocinadores, organizava as caravanas pelos interiores do Espírito Santo e me levava com ele. Recentemente encontrei fotos minhas, aos 7 anos de idade, em uma campanha de vacinação dentro de uma comunidade do Estado. E eu trabalhava, porque ele fazia dos braços que ele tinha, braços de trabalho.

Gradiva vem desse espírito, esse espírito paterno pelo social. Papai dizia uma coisa muito interessante, que orientava esses mutirões e o trabalho que fazemos no Instituto: “Não é porque as pessoas não têm acesso a algumas coisas, que elas devem receber qualquer coisa”. Olhando a relação que ele estabelecia com todos que faziam estes mutirões acontecerem, entendi que, se eu fizesse uma clínica, precisaria fazer uma clínica cuidada.

Um outro ponto foi determinante para eu entender Gradiva. Quando me formei na faculdade, no ano 2000, chegávamos no mercado de trabalho escolhendo entre consultório e análise ou supervisão e grupo de estudos. Papai me incentivou a continuar estudando, facilitando financeiramente meu acesso a todas essas coisas. No entanto, acompanhei diversos colegas se formando e deixando seus estudos de lado; aos poucos, com dificuldades em se estabelecer profissionalmente, foram mudando de profissão. Gradiva é uma resposta ao que, a meu ver, algumas dessas pessoas tiveram dificuldade em sustentar anos atrás.

Outra experiência importante para Gradiva aconteceu em 2019, quando eu, saindo do Pós-doutoramento, fui convidada para supervisionar analistas que estavam começando um coletivo para oferecer atendimento social. A maioria deles clinicava há algum tempo, sabia muito sobre clínica, mas tinha dificuldades na tecitura entre o que fazia e a teoria psicanalítica. Além da supervisão, comecei um grupo de estudo com os textos freudianos. Ali foi o germe de Gradiva.

Enfim. Eu apresento o Instituto Gradiva como uma dobradiça: por um lado, disponibilizamos atendimento psicanalítico a pessoas que comumente não chegam aos consultórios de psicanálise, desejando atender os cantos mais remotos do nosso país; por outro lado, fazemos um trabalho de formação analítica, oferecendo aos praticantes da psicanálise supervisão dos casos clínicos atendidos pela nossa Clínica Social e o estudo teórico da psicanálise. Ela é consequência de um desejo germinado pela admiração ao pai e amadurecida pelas experiências que fui vivendo.

Revista: Qual o impacto da Gradiva no cenário psicanalítico no Brasil?

Gradiva está em funcionamento há 03 anos e não para de chegar gente:são psicanalistas em formação, estudantes de psicologia, transições de carreira, curiosos. Em Gradiva há espaço para todos eles, a depender da entrevista de entrada no Instituto. Ali, escuto a relação que cada um estabelece com a psicanálise, estou em busca da causa analítica. Como espaço de formação, ocupamos uma fenda que existe entre as Universidades e as Escolas de psicanálise. O Instituto é ainda uma outra forma de lidar com o saber analítico e transmiti-lo. Conseguimos assim oxigenar a psicanálise e pensar o contemporâneo sem perder a ética que a fundamenta. Mas acredito que o maior impacto de Gradiva no cenário psicanalítico esteja no social, no número de pessoas atendidas pela nossa Clínica. Nesse tempo, mais de 2500 pessoas procuraram atendimento e tiveram a chance de iniciar um processo terapêutico com um analista, ao menos em formação. Esse é, para mim, o maior feito deste trabalho.

Revista: Se partirmos do pressuposto que a psicanálise, desde sua criação com Freud, sofreu rupturas, você acredita que para a psicanálise permanecer viva no território, na cidade, no social, ela precisa continuar vivendo rupturas de laços e instituições?

As rupturas são próprias à história da psicanálise. E ao humano. Elas aconteceram nas sociedades analíticas que se formaram e na própria psicanálise, de certa forma. Acho que são duas camadas distintas. A primeira delas é a ruptura de laços e instituições: posso dizer que elas fazem parte da relação que os homens estabelecem entre si, a renúncia que precisam fazer para se manter em grupo, a luta pelo poder e prestígio. A outra camada fala da psicanálise. Me chama atenção a necessidade de adjetivarmos a psicanálise: temos a freudiana, a lacaniana, a junguiana, a de orientação lacaniana. A psicanálise é, ao mesmo tempo, uma única e muitas dela.

Revista: a Gradiva não é uma ruptura. Gradiva não é uma ruptura de forma alguma. Eu, pessoalmente, mantenho meus laços institucionais como correspondente da Seção Rio de Janeiro da Escola Brasileira de Psicanálise e com a psicanálise de orientação lacaniana, na qual me formei e me mantenho em formação. Não rompi com nenhuma Instituição na qual passei. Ao contrário, homenageio cada uma delas com esse Instituto; o que me deram e o que vi como possibilidade que estruturam este Instituto.

Revista: E como foi para você se autorizar analista?

Como analista? Esta autorização aconteceu em etapas. A primeira vez que pensei sobre isso foi em minha banca de qualificação de mestrado. Depois de escutar atentamente a apresentação do meu Projeto, Heloisa Caldas disse aos presentes: “essa Moça foi picada pela psicanálise”. Essa fala fez uma marca em mim. Eu era estudiosa, havia aprendido a pesquisar, sempre gostei de ler e entendi que todos esses elementos faziam diferença na minha prática clínica. Nesse mestrado eu estava escrevendo sobre o amor – o de transferência, o cortês e o erotômano –, a partir de algumas figuras do feminino que estavam sendo clinicamente trabalhosas para mim enquanto praticante de psicanálise. Mas foi o significante “picada”, vindo do Outro, que abriu caminho para um trabalho de análise sobre esta autorização. Não à toa Heloísa é tão importante pra mim; sua interlocução há mais de duas décadas orienta meu caminho na psicanálise ainda hoje.

Eu não acredito que a autorização do analista se dá de uma vez por todas. Ao menos para mim não é assim que vem acontecendo. Ela se renova, se reatualiza de quando em vez em minha análise, quando o real toca minha formação e me faz repensar a minha relação com a causa analítica. O meu pedido de entrada como correspondente na Seção Rio de Janeiro da Escola Brasileira de Psicanálise, os trabalhos apresentados e discutidos em Congressos, as produções acadêmicas, os encaminhamentos de pacientes pelos próprios pacientes e pelos meus colegas, a abertura de Gradiva; além da minha análise, todas essas peças também mobilizam especialmente minha autorização como analista.

Revista: A Gradiva é um espaço de formação? Como você pensa a formação do analista dentro da Gradiva? 

A primeira pessoa que convidei para Gradiva foi Márcia (Infante), que trouxe Naira (Sampaio). Em nossa primeira conversa, Naira advertiu que eu estava abrindo um Instituto de Formação em Psicanálise; foi ela quem o nomeou dessa forma. Eu resisti muito a considerar Gradiva dessa maneira, pois quando pensava em formação, imaginava a sistematização de um ensino transmitido de forma rígida e acadêmica. E isso era tudo o que eu não queria para Gradiva. Entendia que se eu sistematizasse, estaria escolhendo um percurso único, homogêneo; estaria desprestigiando as transferências, fundamentais para nosso trabalho.

Mas fui entendendo que, quando Freud falava em formação analítica, ele a estruturava em um tripé análise pessoal, estudo teórico da psicanálise e supervisão dos casos em atendimento por analistas mais experientes. Essa determinação está em um texto pequenininho, de 1919, chamado “Sobre o Ensino Da Psicanálise Nas Universidades”. Vocês conhecem? A partir do estudo desse texto freudiano e de algumas outras referências pude nomear Gradiva como um Instituto de Formação, uma formação permanente e não sistematizada.

Revista: O que você aprendeu e aprende construindo uma Instituição?

Eu aprendi e aprendo muitas coisas. Eu aprendo sobre minha própria formação o tempo todo, sobre a relação que estabeleço com a minha causa analítica. Nesse último ano eu aprendi algo que me alegrou muito, uma nova forma de ser supervisora. Rômulo (Ferreira) escreveu um livro sobre o tema da supervisão (“A supervisão (controle) na formação do analista”), com o qual aprendi que um supervisor precisa não apenas estabelecer uma tessitura do caso, articular teoria à clínica, mas também incidir sobre aquilo que do sujeito impede um analista de fazer o ato que precisa ser feito para que aquele caso ande. Conversando com supervisores e praticantes fui entendendo que alguns destes deixam sua função de analista ou cobram menos do que o paciente poderia pagar, por exemplo, por medo de perder pacientes. Este entendimento mobiliza toda a minha relação com o saber e me ensina enquanto analista, supervisora e professora.

Mas acho que o maior aprendizado que tive e estou tendo construindo Gradiva é a forma de assumir a Direção. Eu nunca estive e nunca almejei o lugar de liderança. É uma função solitária, que exige a tomada de muitas decisões. Minhas decisões impactam a vida de 25 profissionais e 130 alunos. É muita gente, a meu ver. Estou aprendendo que a Direção é uma função solitária, mas não me faz sozinha, pois tenho o Conselho, os supervisores e professores, uma extensa rede afetiva que vem tecendo esse trabalho comigo.

Revista: Gradiva é aquela que avança. Um paciente avança em relação aos seus sintomas, um animal avança em outro. O que é para você avançar?

Pessoalmente? Olha, eu vejo que avanço ao sustentar lugares simbólicos que eu nunca imaginei que pudesse sustentar ou que nunca desejei sustentar. Isso fala da minha relação decidida com meu desejo.

Revista: Você se surpreende com você mesma, né?

É, eu me surpreendo comigo mesma. Na minha história, sempre ocupei o lugar de coadjuvante, me era mais confortável. Olhando para o meu percurso institucional, sempre estive em relação ao saber de um Outro, sem me autorizar como um deles: fiz uma graduação, duas pós, mestrado, doutorado, pós-doutorado. Falar em nome próprio é uma conquista. Encontrar um estilo de escrita e transmissão também. Nesse sentido, Gradiva marca um ponto de virada; um avanço em relação à minha posição subjetiva diante da vida. E ela me exige nesse sentido. Tem uma expressão corrente entre nós, que me aponta como a cara de Gradiva, a voz do Instituto. É uma meia-verdade, que deve ser considerada de forma surpreendente.

Revista: Angélica, você é um grande nome. Risos de todas.

Angélica Cantarella Tironi
Psicanalista. Diretora do Instituto Gradiva de Psicanálise. Correspondente da Seção Rio de Janeiro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-RJ). Pós-Doutora em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGTP/RJ). Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).