Entre o caos e o controle: o homem moderno diante do espelho estilhaçado – Rodrigo Sousa Fialho

16/04/2025

Há filmes que nos espelham, mas há aqueles que nos despedaçam. O Homem Duplicado, de Denis Villeneuve, é um desses. Não se trata apenas de um suspense psicológico, mas de uma imagem radical da divisão moderna – daquilo que Freud chamou de sujeito civilizado, e Bataille de homem decapitado. A duplicação, aqui, está longe de ser é um truque narrativo: é uma denúncia. O protagonista é duplo porque somos todos duplos. E porque ninguém sai ileso da promessa de controle que a cultura moderna impôs ao corpo.

Anthony e Adam: dois corpos idênticos, duas presenças inquietas e inquietantes. Um é ator, o outro professor. Um é marido de uma jovem mulher que espera um filho seu, o outro é amante de uma mulher ardente de paixão. Ambos são o mesmo e, no entanto, irremediavelmente cindidos. Essa duplicação, que percorre o filme com o peso de um delírio, é mais do que uma metáfora: é uma estrutura da condição moderna. A cisão entre o homem que deseja e o homem que cumpre; entre o corpo que pulsa e o que obedece; entre o que sonha e o que se adapta.

Hobbes já intuía esse conflito quando falou da necessidade de um Leviatã para conter as paixões. Platão o disse antes, ao colocar a razão como guia legítima da alma. Mas foi Freud quem melhor soube nomear o preço da civilização: a renúncia pulsional. A cultura, dizia ele, exige que abramos mão de nossos impulsos mais intensos em nome da ordem. O resultado é um homem frustrado, tensionado, fragmentado entre o que deseja e o que lhe é permitido desejar. O filme apenas encena esse drama com brutal clareza.

Adam, o professor de História, vive uma rotina monótona. Aulas repetitivas, noites insones, afetos moribundos. Anthony, seu duplo, é ator — profissão do fingimento, do desejo representado. Um vive a ordem; o outro, o caos mascarado. Mas ambos são o mesmo corpo em disputa. É a tentativa de costura entre esses dois polos que faz o filme fluir. Mas não há conciliação possível. Quando se encontram, não se abraçam. Medem-se, temem-se, evitam-se, estranham-se. Como se cada um representasse o lado obscuro do outro. Como se um espelho tivesse trincado e agora refletisse não um rosto, mas uma fenda.

Georges Bataille, em um dos textos publicados na revista Acéphale, escreve: “É tempo de abandonar o mundo dos civilizados e sua luz… É necessário tornarmo-nos totalmente outros ou cessar de ser”. Essa recusa da razão como estrutura totalitária da existência pulsa em Anthony, que projeta em Adam aquilo que não suporta admitir em si: sua fragmentação, sua fraqueza, seu desejo incontrolável. Para lidar com isso, precisa criar outro — e, ao criá-lo, desgarra-se ainda mais de si. Não se trata de esquizofrenia clínica, mas de uma forma radical de subjetividade contemporânea.

A cultura capitalista, em sua versão neoliberal, exige do sujeito um tipo específico de performance: disciplina, eficiência, fidelidade, produção. Aquele que cumpre essas exigências é celebrado como maduro, bem-sucedido, normal. Mas há sempre um custo. A fidelidade sexual, por exemplo, é apenas uma das renúncias que a cultura demanda em troca da estabilidade. Anthony, dividido entre sua esposa grávida e sua amante cheia de paixão, não escolhe. Divide-se. Torna-se dois: um eu e seu duplo. E ao invés de assumir a fratura, a encena. Como se a divisão pudesse ser vivida sem dor.

A aranha — imagem recorrente no filme — não é apenas um elemento surreal. É um símbolo denso. Aparece primeiro como serva sedutora, depois como gigante opressora. Representa o feminino como enigma: a mãe e a amante, o controle e o caos. A aranha é a mãe de Anthony, mas também Mary, a mulher com quem ele transborda. E no fim, quando uma aranha gigantesca domina a metrópole, entendemos: não se trata de uma mulher específica, mas da rede simbólica que aprisiona o desejo. A cultura, a moral, a tradição — tudo isso nos tece como uma teia. E quanto mais lutamos para escapar, mais nos enredamos.

A mãe de Anthony é a voz do controle. Ela representa o discurso adulto, maduro, racional, funcional. Ela sabe que não pode haver dois homens exatamente iguais e tenta, em vão, chamar o filho de volta à realidade. Mas sua autoridade é seca, moralista, filisteia. Benjamin a descreveria com precisão: é aquela que zomba dos sonhos da juventude. Aquela que impõe a maturidade como morte do desejo. “Você tem um emprego respeitável”, diz ela, como quem decreta: fique onde está, obedeça, cale.

Walter Benjamin, ao refletir sobre a pobreza da experiência na modernidade, afirmou que o homem moderno perdeu a capacidade de narrar a si mesmo. Experimenta vivências (Erlebnis), mas não vive experiências (Erfahrung). É fragmentado, sem passado, sem vínculo, sem transmissão. Anthony é esse homem. Carrega vivências intensas, mas não sabe o que fazer com elas. Não consegue contá-las. Cala-se. E, no silêncio, adoece. A duplicação é a forma que encontra para suportar sua intransmissibilidade. Como se, ao dividir-se, pudesse escapar da impossibilidade de dizer.

Em uma das cenas mais intensas do filme, Helen — a esposa grávida — visita a universidade onde Adam leciona. Ao vê-lo, reconhece o marido. Mas Adam não a reconhece. É como se a identidade se dissolvesse diante do olhar da esposa. Helen não sabe mais quem é Anthony. E Anthony já não sabe se é ele mesmo. A duplicação, aqui, atinge o ponto do delírio: o sujeito perde as bordas, perde o contorno, perde a capacidade de se localizar em sua própria história.

Lacan chamaria isso de “o sujeito dividido pelo significante”. O sujeito barrado, castrado, alienado no Outro. Anthony é, ao mesmo tempo, aquele que deseja e aquele que se censura. Aquele que trai e aquele que se culpa. Não há síntese possível. Apenas o eterno retorno da fragmentação. A cena em que Helen, chorando, tenta arrancar dele alguma verdade é um dos pontos mais fortes do filme. “Eu acho que você sabe”, ela repete, como quem tenta arrancar um sentido da mudez. Mas ele não sabe. Ou sabe demais. E por isso finge que não.

Ao final do filme, Anthony acredita ter feito uma escolha. Mary morre em um acidente, e ele volta para os braços de Helen. Parece, por um instante, que tudo se resolve. Que o caos foi vencido pelo controle. Mas a aparente normalidade não dura. Logo ele encontra uma chave — símbolo do acesso à caverna pulsional — e prepara-se para retornar ao clube secreto. A decisão foi apenas aparência. O retorno ao desejo é inevitável. O homem centrado é uma fantasia. E é por isso que, ao entrar no quarto, encontra novamente a aranha. Imensa. Silenciosa. Onipresente. Invencível.

Essa última imagem é devastadora. A aranha, que no início era pequena, torna-se agora uma presença acachapante. Como se a tentativa de suprimir o desejo tivesse apenas alimentado sua força. Como se toda repressão acumulada explodisse em forma de monstro. Anthony a vê, mas não se espanta. Apenas aceita. Como quem, enfim, entende: o controle é ilusão. O caos, inevitável. E o homem, uma corda esticada entre ambos.

Freud chamou isso de “mal-estar na civilização”. Bataille, de “vida sem cabeça”. Benjamin, de “pobreza da experiência”. Lacan, de “falta-a-ser”. Os nomes variam, mas a ferida é a mesma. Somos sujeitos rasgados por forças que não dominamos. Desejamos o que nos destrói. Fugimos do que nos cura. Construímos castelos com a razão, mas sonhamos com abismos. E quando o espelho se parte — como em O Homem Duplicado — tudo o que podemos fazer é contemplar os cacos. E reconhecer, em cada fragmento, um pedaço de nós.

Autor: Rodrigo Sousa Fialho
Aluno de Gradiva